Imagem retirada da Net
É-ME DIFÍCIL ACEITAR OS ESTÍMULOS VISCOSOS
Carlos
Pereira
É-me
difícil aceitar os estímulos viscosos
vindos
de quem se julga superior aos demais.
Admito
que me faltam os tiques dos meninos
que
estudaram num qualquer colégio francês ou alemão.
Que
sou rude com as palavras e com os gestos.
Confesso
que nunca pude dizer:
-
O meu pai mandou o chauffeur buscar-me à escola no mercedes
ou
quando chegar a casa a Maria vai preparar um lanche com leite e chocolate,
torradas
com manteiga, queijo e compota de morango.
Mas
pude dizer:
-
Joguei à bola, feita de uma meia velha já bastante remendada
e
com trapos também velhos e gastos. Apanhei girinos nas poças de água
nascidas
das primeiras chuvas de Outono.
Sabia
o nome dos pássaros pelo seu canto e tinha amigos leais.
Confesso
que nunca pude dizer:
-
O meu pai levou-me a visitar o jardim zoológico.
Mas
pude dizer:
-
O meu pai levou-me à pesca, ensinou-me a utilizar a cana,
os
diversos tipos de anzol e a panóplia de iscos.
É-me
difícil aceitar os estímulos viscosos
vindos
de quem se julga superior aos demais.
Avança.
Marcha. Bate com vigor a bota na parada.
Bate
a continência. Salva a nação e a aparência.
Olha
a boina, recruta, está mal colocada.
Ó
nosso pronto quem o ensinou a marchar.
Que
falta de elegância, que inoperância.
Ó
nosso cabo leve o jipe ao comando que o nosso general
quer
ir ao ninho matar saudades da sua jovem namorada.
Acabaram
as munições. Acabou a guerra.
Quem
a ganhou?
-
Fomos nós, que tínhamos poemas de combate em vez de aviões e de um
submarino
decrépito e ferrugento, que nunca tirou a cabeça debaixo de água;
se
fosse areia seria uma avestruz.
Truz!
Truz!
Quem
é?
-
Somos nós que fomos ao lado de fora, para aquilatar a veracidade do que dizem.
Mas
é mentira o que estão a dizer, o que disseram e o que irão dizer no futuro.
É-me
difícil aceitar os estímulos viscosos
vindos
de quem se julga superior aos demais.
O tempo e os rios passam lentos e é tão
difícil sofrer neste país;
talvez por isso o nosso extermínio não seja
exequível.
Aveiro, 21.02.2014
Publicado no Diário de Aveiro
Dito no programa de fados e poesia, “Solar da
Bairrada”, pelo fadista e poeta José Guerreiro na Rádio Província de Anadia
in "Poetas d'hoje / Antologia Edição Grupo de Poesia da Beira Ria / Aveiro 2016
in "Poetas d'hoje / Antologia Edição Grupo de Poesia da Beira Ria / Aveiro 2016
palavras fortes a narrar o presente e o passado.
ResponderExcluiramanhá será futuro e não sabemos o que nos espera...
bom domingo
beijinho
:)
E estou convencido que o saber das crianças que crescem no campo, ou pelo menos fora das grandes metrópoles, mesmo que criadas com algumas dificuldades económicas, têm uma base de saber muito maior que os das cidades.que têm poder económico.
ResponderExcluirE esta minha tese tem a ver com a quantidade e variedade de estímulos, que são muito maiores no campo (saber o nome dos pássaros pelo canto, por exemplo, resulta de um estímulo da infância que, segundo os cientistas, até faz aumentar o número de neurónios...).
Para além disso, ambientes protegidos não "temperam" o Homem.
Magnífico texto, gostei imenso.
Um abraço e bom fim de semana.
Belo e significativo texto poético
ResponderExcluirVenham mais cinco contra a canalha
Adoro este texto!
ResponderExcluir