CANAL DE SÃO ROQUE

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Foto de Gabriel Pereira




quinta-feira, 18 de agosto de 2022

TENHO PARA MIM TODOS OS MARES

 

TENHO PARA MIM TODOS OS MARES

Carlos Pereira

 

 


tenho para mim todos os mares da minha pátria

todos os barcos são os meus olhos

a velarem os inexpugnáveis horizontes

 

a água profunda da tua boca

inunda-me com a mesma mansidão

com que as ondas adormecem em mim

 

e invadem sofregamente todos os poros

da tempestade que excita os nossos corpos

num ritual tão primitivo como o orgíaco beijo

 

um silêncio límpido de liberdade

abraça-nos até á exaustão no entendimento da palavra

na raiz imutável dos lugares a que pertencemos

 

 

Aveiro, 14.07.2022

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

SONETO INGLÊS

 

SONETO INGLÊS

Carlos Pereira

 

 

Hei-de ser um pouco bem mais importante,

but not much else, que o rei da importância.

Não será para o meu espírito tarefa irrelevante,

porque me falta a acintosa arrogância.

 

À falta de estatuto poderei ser limpa-chaminés

d’aqueles que, por solércia, nem escada usam.

My old friends, venham pelos próprios pés;

os carros soltam gases que na respiração acamam.

 

Não contem comigo se não para viver

mesmo neste mundo de obscenas histórias.

Inventariadas as palavras, é hora de escrever

The book, que resgate as débeis memórias.

 

Deuses nos céus concedam-nos misericórdia!

Arcanos sábios reatem os rumos da concórdia!

 

Aveiro, 08.06.2022

 

 

 

 

SENSAÇÕES

 

SENSAÇÕES

Carlos Pereira

 

 

rés  à respiração desordenada do tédio

há um bocejo encurralado

no intervalo entre a hora abrupta da manhã e

os obscuros jardins circundantes

onde me acoito flagelado

 

cai a noite de um azul vibrante

lado a lado com a minha vida e

a Terra de face érea rejubila

entre cânticos e a mão ebúrnea

de Alguém que não vacila

 

que todas as árvores riam

em harmoniosa floração

e se doe na plenitude dos dias

a obstinada alegria transbordante

ao meu original verão

 

Aveiro, 02.06.2020

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

NÂO RARAS VEZES

 

NÃO RARAS VEZES

Carlos Pereira

 

 

não sabemos viver na vertigem plena

dos rutilantes dias

 

damos passos de adolescente incauto

e viajamos na atmosfera calamitosa do caos

 

não raras vezes

viramos as costas a nós mesmos

e assim

não retomamos o caminho que nos liberte

do cerco agressivo a que nos condenámos

 

a indiferença corrói-nos os sonhos

e agrilhoa as mentes e o pensamento

 

é tempo de nos tornarmos delinquentes das palavras

e seja arregimentada a libertação da imaginação

templo guardião da nossa devota loucura

arma cortês que nos libertará das trevas

 

talvez a nossa voz ainda possa ser ouvida

quando a sua força crescer

no seio das palavras desnudadas

na gloriosa pacificação dos gestos

 

talvez a deles

em subtil perorar reles

se deixe de ouvir

como única e omnisciente

 

 

Aveiro, 27.05.2022

 

 

 

ERA AO DOMINGO

 

ERA AO DOMINGO

Carlos Pereira

 

 

 

 

era ao Domingo que os teus olhos mais brilhavam

e os nossos espargiam singular luminosidade

os corações pulsavam em desordenado ritual

 

aquele aroma do coelho estufado

era um milagre das tuas mãos capazes

da tua habilidade maternal de mitigar a dureza da vida

 

era ao Domingo que o mundo era mais justo

e menos dissímil naquela mesa compassiva

arraigada no chão da cozinha da casa velha

 

inesquecível lembrança que trago colada

à pele da tua aristocrática dignidade

eternizado será o teu tranquilo halo de luz

 

 

 

Aveiro, 6.07.2022

 

 

APOLO VERSUS ARES

 

APOLO VERSUS ARES

Carlos Pereira

 

 

sopesaram os pesados pesos e halteres

do peso pesado

 

alguns gramas a mais

sentenciou a implacável balança

 

logo agora que fizera científica dieta

perdera a protuberante pança

excelsa figura perfeito atleta

 

adiado o combate

suspensas a emoção e a vida

 

nunca se saberá quem teria sido

o vitorioso desta peleja destituída

 

Aveiro, 16.06.2022