O RAPAZ QUE ESCUTAVA OS GRILOS
I
Recordo o grilo,
quando era menino,
outrora.
Sou-o, ainda, pequenino,
agora,
quando escuto o seu trilo.
Grilo que trinas com as asas
canto vibrante;
instante encanto.
Nos campos ou nas casas
a qualquer distância,
perto ou mais distante;
é sempre o mesmo espanto
desde a inocente infância.
Vem-me á memória
aquelas tardes de verão,
encantadas,
felizes;
cada qual com a sua história.
Ouço o canto do grilo de então
e relembro as raízes
criadas,
etéreas, com o meu irmão.
II
Gira o pião no chão;
Apanhado entre os dedos
gira na mão.
Gira na mão o pião
e o alcatruz na nora.
Giram sem segredos
o pião redondo, veloz
e a nora decrépita, ronceira.
Fizeram do silêncio voz
que eu agora
recordo à minha maneira.
A terra amadureceu
toda inteira
e as feridas sararam
enquanto o pião rodopiou
e a água da nora ronceira
que sofrida jorrou
até ao céu onde pairaram
estrelas para a minha infância fagueira.
O pião continua a girar sem medos
mas a vetusta nora
foi condenada a outros degredos
tão dolorosos como os d'outrora.
III
Li Camões
e embarquei nas naus quinhentistas.
Venci todos os mares
e mais os da minha imaginação.
Reconheci as armas e os barões.
Pedi acomodação ao deus Lares.
Cruzei-me com o Adamastor;
Que emoção!
Desfiei, uma a uma todas as conquistas,
fui poeta e navegador.
IV
Li Fernando Pessoa
com avidez de conhecimento
e sonhei com um novo império.
Conheci os heterónimos
e revi-me no guardador de rebanhos.
O valor da eclética obra ecoa
para além do mais longínquo hemisfério
e faz sonhar tantos poetas anónimos.
Que nunca a palavra esquecimento
seja a pátria de versos tamanhos.
V
El rei D. Dinis,
“O Lavrador”
Mandaste plantar
pinheiros em Leiria.
Foste feliz!
Cantaste sem cessar
a tua poesia:
eras poeta trovador.
Foste rei
defensor da agricultura.
Amaste a tua grei.
Foste leal,
trovador poeta,
asceta,
rei de Portugal
e da cultura.
VI
El-rei D. Sebastião!
Foste a Alcácer morrer
a defender
este chão longe.
Foste soldado, cristão
monge.
Com a espada na mão
sem retroceder
foste a Alcácer Quibir
renascer
para não mais vir.
Passaram meses,
anos;
teu feito de guerreiro
não foi olvidado.
A tua grei rejeitou
sem hesitar
falsos desenganos
e criou
a lenda em que o Desejado
haveria
de regressar
um dia
numa manhã de nevoeiro.
VII
Eram meninos
maltrapilhos
de rostos felizes,
corações benignos;
filhos,
do vento e da má sorte.
Criavam raízes
na sã amizade;
nos olhos a serenidade
de quem finta a vida e a morte.
Jogavam no estádio da rua
de palco vazio.
A vitória era sempre sua;
Nem a vida
nem a bola
sofriam desvio
até ser conseguida.
No chão a sacola
imobilizada,
esquecida.
Cada finta de corpo esguio
adiava
os deveres da escola.
VIII
A forja incendeia
a vida do ferreiro
e o ferro por moldar.
Faz uma candeia
e um farol altaneiro
que no alto mar,
ou no mundo inteiro,
alumie sem peia.
Faz uma grade
com uma cruz de cristo
que no cume do monte,
aprisione a maldade.
Aviva o lume;
começa a longa ponte.
Afia o gume
da espada do bem que há-de
vencer toda a crueldade:
IX
Ergo-me do covo poço,
Abismo milenar
Onde me condeno,
Tantas vezes perdido.
Outras tantas, erguido;
Dessa força me remoço.
Sou herói no meu próprio caminho.
A cada passo renasço
Sozinho.
Da solidão faço
Um poema inelutável
E o esboço de um deserto
Sem aridez; só viço imensurável.
Busco a verdade e a luz
Por toda a Terra onde houver
Mentes em incandescência.
A implacável ignorância reduz
A chama do saber
E dá brilho à sinistra decadência.
Vou continuar a prosseguir
O meu caminho.
Medo já não tenho,
Do negro poço.
Passo a passo vou iludir
O biltre fosso
Carregando o Lenho
De verde pinho.
X
Alentejo!
Terra soalheira
Terra abandonada
Grão na eira
Chão desigual
Moura encantada
Linda ceifeira
Coração de Portugal!
Terra morena
Seara madura
Paisagem serena
Vida dura
Sol no terreiro
Luz sem igual
Povo obreiro
Generoso celeiro
Pão de Portugal!
Cante alentejano
Canto primitivo
Património mundial
Sentimento humano
Povo emotivo
Voz de Portugal!
XI
Sou poeta de versos límpidos e serei
Incapaz de ser doutra forma.
À poesia há muito me dei;
Faço poemas sem regra ou norma.
Só às palavras reconheço lei
E com elas a estrofe desenforma
O poema, que a cada dia, renovarei.
A palavra, só amada, se conforma.
Da palavra, minha essência e morada,
Serei pertinaz defensor, paladino,
Para que nunca seja, ultrajada.
Irmanados defendemos um destino:
Tu permaneças sempre livre, não
agrilhoada;
Eu, em cada poema, seja teu peregrino.
XII
Deixem-me ser poeta sem regras,
sem limites, sem ornatos.
Deixem-me sentir o vento norte
acariciar as rugas da face e,
saborear a odorosa maresia
inundando as minhas intemporais
narinas.
Deixem-me andar com os pés nus
sobre o lodo dos pântanos seculares
e
fazer vénias aos arbustos
lacustres, inocentes,
despojados de sórdidas intenções.
O meu caminho é um poema inacabado,
cheio de palavras túrgidas
anotadas nas margens do livro do
tempo.
Deixem-me só com os pássaros de
fogo
a desenharem no céu, ainda sem
estrelas,
orquestras de virgens ninfas,
tocando liras
numa lúbrica sonata à nascitura
lua.
Deixem-me ser a canção de todos os
trovadores,
carne mártir dos sofredores,
música em poema épico da vida e da morte;
dos sem sorte,
dos esconjurados,
dos desabrigados,
dos sem voz,
dos sem fim,
dos que esperam de nós,
dos que sabem de mim.
XIII
Casa pequena! Muito pequena!
Grande de mais para a nossa pobreza.
A porta da cozinha tinha um postigo
Que dava para a rua de curva serena.
Quisera eu esquecer tamanha singeleza,
Quisera, mas não consigo.
Tinha pátio e um pequeno jardim
Com flores várias e uma macieira.
Tinha um poço, tanque para lavar a
roupa
E balde com uma corda que parecia não
ter fim;
Uma horta, galinhas e uma coelheira:
(Porque com animais de bico pouco se
poupa).
Casa pequenina! Muito pequenina!
Grande de mais para não sonhar.
A porta da cozinha tinha um postigo;
Silhueta adulta num corpo de menina.
Quisera eu deixar de a recordar,
Quisera, mas habitará sempre comigo.
XIV
No chão
longínquo da minha origem,
Sulcam
águas de felicidade
Nos
regatos da minha infância.
Desse
tempo recordo-me,
Do olhar
sereno, feliz, da minha mãe;
Orgulhosa
da sua prole.
XV
o poema mais puro habita em mim.
por isso
sei-o de cor. o meu pai levava-me
às
cavalitas porque era de noite e eu
não via
onde punha os pés. o meu pai
atravessou
o esteiro a nado comigo às costas,
porque eu
ainda não sabia nadar e o regresso
a casa
era mesmo ali depois da outra
margem.
XVI
É já longo
o caminho
Que
percorri
Desde o teu
ventre, mãe.
Quando me
recordo de ti
Chorando
baixinho,
Meu coração
chora também.
Venho
pedir-te
Que não te
martirizes:
Eu e os
meus irmãos,
Somos felizes!
Sempre
que damos as mãos,
Lembramos
as nossas raízes.
Olha, tenho
uma alegria
Para te
dar:
Já tens
mais netos
E dos mais
velhos,
Lindos
bisnetos;
Belos
espelhos
Para o teu
eterno olhar.
XVII
No bolso dos calções
um naco de broa.
Nos pés descalços
a ligeireza
de quem voa.
Nos corações
uma singeleza
sem percalços.
Despidos, em pelota;
Um artístico mergulho,
no canal da ria.
Braçada a braçada,
voamos como uma gaivota.
No ar suave barulho
prenúncio de alegria
amizade abençoada.
Um derradeiro mergulho,
nesta bela tarde
de Julho.
O sol ainda arde!
Num torpor
nossos corpos molhados
anseiam pelo seu calor.
Enxugados
é chegada a hora
de dividir a broa
com a gaivota, arguta, que voa
no mesmo ritual fremente,
antes de irmos embora.
XVIII
Ah! Flor da juventude
infância abençoada;
fui feliz quanto pude.
De todos fui amigo;
em cada aventura realizada
fiz da amizade sólido abrigo.
A fértil imaginação
não conhecia limites, fronteiras;
nascia da pueril inocência
de quem só quer chegar a qualquer lado.
Nem inquietação
nem medo
de anunciadas barreiras,
consentidas rédeas da adolescência,
que toma como seu todo o mundo
conquistado
e disso não faz segredo.
XIX
Atravessa o rio, saltita de pedra em
pedra e
imagina-te no céu a saltar de estrela em estrela.
Corre de arbusto em arbusto e
imagina-te uma ave
a saltar de ramo em ramo numa velha
árvore.
Olha o pôr-do-sol na linha do horizonte
num mar distante e,
imagina-te num barco a navegar numa
rota de esperança.
XX
A rã coaxa no charco.
O espelho do rio resplandece a luz do
sol.
Viva a vida! Viva a natureza!
Abraça o mundo.
XXI
Labutas no filão
De ouro.
Lutas pelo patrão
Como um touro
Briga pela vida;
Obstinado,
Enraivecido.
Procuras no chão
Novo caminho fadado,
Para outra partida.
XXII
Mãos fortes, calejadas
Seguras a enxada dura;
Engelhadas, gretadas
Por tantos anos contados.
Esventras a terra madura
Por tantos infernos passados.
XXIII
O pastor segura o cajado na mão;
rugas no rosto, sulcos na terra
gretada,
feitos pelo sol. Na outra, segura os
cornos da solidão,
que rasga sulcos e rugas na alma
atormentada.
A seus pés o fiel amigo – Tejo –
Fita-o com o seu olhar tão nu;
dizendo em solilóquio: não te invejo,
pois sou pastor como tu.
XXIV
Toupeira,
De olhos abertos.
Picareta certeira
Cavando o carvão.
Gestos certos
Na quase escuridão.
Barreira,
Que não reduz
A tua vocação.
Dos teus escolhos
Gerarás luz;
Da tua cegueira
Outros olhos
Se iluminarão.
XXV
Teu barco teu pilar, teima,
em labutar.
Não exageres na freima
que te pode matar.
Lanças as redes e a sorte
no teu barco pequenino.
Foges da vida e da morte,
desde menino.
XXVI
Não sou hoje mais do que fui ontem.
Admitir isto é a minha última alucinação:
é o meu lúcido momento ao lusco-fusco do
entardecer
que tarda a estrela d' alva.
Mudar o mundo era um dos meus propósitos:
Fiz tão pouco para isso; pouco é igual ao
nada que sou.
A pouca coragem ou a falta dela,
inibe o pensamento colectivo, dificulta a
acção individual
e pode, até, perigar a peregrina
liberdade.
Todos os meus amigos me confortaram
com abraços de bondade simiesca, dizendo:
que te não fique, mágoa, esmorecido o
preito ou
apoucamento pela empresa em vão, porque
também nós,
artífices do nada fazer, solidários somos;
se algum feito houve,
parca memória nos abordou ao cais dos
dias.
Agastados ficamos, tão leve punição,
pela inoperante cidadania e pela asquerosa
insensibilidade perante o sofrimento do
mundo
tanto mais que, a vida, nos tem dado de
presente
não poucas vezes o privilégio da ausência
de tristeza.
Seguir um lema mesmo que circunstancial, é
para nós,
humanos, uma das maiores arduidades; em
contraciclo
temos a sedutora habilidade da não
presunção do objectivo
para não, em caso de falência, não termos
de congeminar bastardas desculpas.
Nada é mais atroz do que caminhar
indiferente
pela estrada incendiada de rancores ou por
inóspitos trilhos,
atapetados por falsos confortos miríficos.
Só nos resta a fuga para o arrependimento,
para o auto flagelo do pensamento,
para o prazer mundano:
caminho tão desprezível quanto a nossa
vontade.
XXVII
Lá vai o “vouguinha”
rio Vouga acima
serra abaixo aos tropeções
pela serpenteante linha;
faz versos com rima
e nuvens de fumo com corações.
Lá vem o “vouguinha”
junto ao rio.
Venceu vales e montes;
deixou para trás a serra,
dessedentou-se nas fontes.
Pouca terra! Pouca terra!
Feliz de quem o viu
à tardinha, altivo,
a regressar à origem.
Meu olhar eternamente cativo
como o olhar de uma virgem.
XXVIII
Na escola aprendi
que a mítica sabedoria
é aço, na forja, por temperar.
Quando li
o primeiro livro de poesia,
senti
que também podia
aprender a sonhar.
De todas as lições que escutei
nenhuma foi definitiva;
mas hoje, tudo o que sei,
começou a germinar
no tempo em que era menino
e a vontade de aprender tão viva,
que mesmo a brincar
comecei a desenhar
o meu auspicioso destino.
XXIX
Queria, tanto, voltar a montar
o meu cavalo de pau;
feito de um cabo de vassoura,
cuja utilidade já se finara;
não para percorrer caminhos de antanho,
mas para fazer a viagem de regresso
à aventurada infância.
Nesse tempo os sonhos, tinham o tamanho
da mais longa ocidental distância.
XXX
Nasci num tempo em que os meninos,
acendiam estrelas para verem na noite
escura.
Havia muito céu mas a terra era bem
dura.
Havia pouca terra para uns
e muito céu para alguns.
XXXI
Trago o destino às costas e,
Não me canso.
Trago o sol nos olhos e,
Não me deslumbro.
Trago a noite na alma todo o dia
Até voltar a ser noite e,
Não esmoreço.
Trago a esperança num oásis
Que não distingo e,
Não desisto.
Trago a aridez do deserto
Na secura da minha boca e,
A minha sede resiste.
Trago as palavras mortas de fome e,
A minha voz subsiste.
XXXII
Alma nobre de um povo
Leal no apego à terra
Espírito altruísta e
probo
Na grandeza que
encerra
Trigueira seara de
pão
Encanto do nosso país
Jardim de aromas e
solidão
Ondas de trigo com
gente feliz
XXXIII
Os pés do menino, descalços, seguiam
o sulco húmido do arado, puxado
pela dócil parelha de vacas amarelas,
que o Ti Xico, sabiamente conduzia
com a mão esquerda, tisnada
pelo sol de muitos anos. Na direita,
uma pequena vergasta de vime,
à qual só dava serventia na mudança de rego,
batendo mais na canga do que nos nobres animais;
ajuda prestimosa na manobra rotineira
a cada novo sulco esventrado à terra.
Era visível de forma indelével,
a conivente irmandade entre homem e animais.
As lavandiscas esvoaçavam num afã meticuloso
na esperança de uma refeição de vermes subtérreos,
que o arado, generosamente, punha a nu.
Todos trabalhavam para granjear o árduo
sustento. O menino era, na maior e mais sábia
sala de aula, um atento discípulo.
XXXIV
Defronte da minha casa há uma casa
igual à minha
Só porque tem janelas e portas, mas não
é da mesma cor;
A minha é branca, toda branca,
Menos a faixa em baixo a toda a volta
que é azul;
Azul muito escuro, tão escuro que
parece preto.
Quase toda a gente pensa que é preto,
mas não é.
É azul. Se fosse preto, pensariam que
era azul?
- Às tantas, se calhar.
Há pessoas que confundem as cores
E não se preocupam com isso. Fazem bem.
Que importância tem não saber a cor das
casas
Ou até, confundi-las, mesmo que seja de
propósito.
O que não podemos confundir são as
pessoas
Que moram dentro delas ou fingem morar.
Nunca olho pela janela da minha casa
Para a casa defronte igual á minha,
Que não é toda branca nem tem a faixa
azul,
Escuro, que parece preto.
Assim, não confundo as cores, nem as
pessoas.
XXXV
Aqui onde o mar conflui com a vida,
comando um exército de silêncios;
sou apenas eu, só eu, poeta sem máscara
e
versos sem mentira, diáfanos, como a
luz.
Há um baú enterrado na areia cheio de
segredos,
meus e teus, que conhecemos
inequivocamente.
Mas há um, apenas um, que tu
desconheces.
É o mais impactante de todos, aquele
que mais me agrada;
mas tu és meu amigo e confidente, e,
vou revelar-to:
Sou tão humílimo como tu, ó mar.
XXXVI
É-me difícil aceitar os estímulos
viscosos
vindos de quem se julga superior aos
demais.
Admito que me faltam os tiques dos
meninos
que estudaram num qualquer colégio
francês ou alemão.
Que sou rude com as palavras e com os
gestos.
Confesso que nunca pude dizer:
- O meu pai mandou o chauffeur
buscar-me à escola no mercedes
ou quando chegar a casa a Maria vai
preparar um lanche com leite e chocolate,
torradas com manteiga, queijo e compota
de morango.
Mas pude dizer:
- Joguei à bola, feita de uma meia
velha já bastante remendada
e com trapos também velhos e gastos.
Apanhei girinos nas poças de água
nascidas das primeiras chuvas de
Outono.
Sabia o nome dos pássaros pelo seu
canto e tinha amigos leais.
Confesso que nunca pude dizer:
- O meu pai levou-me a visitar o jardim
zoológico.
Mas pude dizer:
- O meu pai levou-me à pesca,
ensinou-me a utilizar a cana,
os diversos tipos de anzol e a panóplia
de iscos.
É-me difícil aceitar os estímulos
viscosos
vindos de quem se julga superior aos
demais.
Avança. Marcha. Bate com vigor a bota
na parada.
Bate a continência. Salva a nação e a
aparência.
Olha a boina, recruta, está mal
colocada.
Ó nosso pronto quem o ensinou a
marchar?
Que falta de elegância, que
inoperância.
Ó nosso cabo leve o jipe ao comando que
o nosso general
quer ir ao ninho matar saudades da sua
jovem namorada.
Acabaram as munições. Acabou a guerra.
Quem a ganhou?
- Fomos nós, que tínhamos poemas de
combate em vez de aviões e de um
submarino decrépito e ferrugento, que
nunca tirou a cabeça debaixo de água;
se fosse areia seria uma avestruz.
Truz! Truz!
Quem é?
- Somos nós que fomos ao lado de fora, para
aquilatar a veracidade do que dizem.
Mas é mentira o que estão a dizer, o
que disseram e o que irão dizer no futuro.
É-me difícil aceitar os estímulos
viscosos
vindos de quem se julga superior aos
demais.
O tempo e os rios passam lentos e é tão difícil
sofrer neste país;
talvez por isso o nosso extermínio não seja
exequível.
XXXVII
Sou apenas um, dentre muitos,
que não está no meio da estrada que te
leva.
Faço parte da parte que sabe que em
muitos dias
pouco ou nada comes durante o dia.
Rebolo na relva e exalo o cheiro húmido
da terra
nos finais do outono.
Faço parte da parte que sabe que vais
sentir frio
nos ossos no inverno da cama.
Ouço a música das estrelas nas noites
de luar
e sei de cor as canções que me ensina o
mar.
Faço parte da parte que sabe que tu já
perdeste
a esperança de sonhar.
Dá-me a tua mão.
Vou levar-te onde há gente que chora
por ti.
Que traz uma cebola na algibeira para
não usar
as suas verdadeiras lágrimas ( usam as
do crocodilo)
porque podem fazer falta
para desgraças mais importantes que a
tua.
A ti, menino da rua, já te secaram as
lágrimas
e finges ser feliz na tua humildade.
Faço parte da parte que sabe que te
roubam a mocidade,
mas também sei que jamais te usurparão a dignidade.
XXXVIII
Para ti não é preocupação o caldo
Da panela magra no lume do pobre;
Nem o seu agasalho a preço de saldo;
Tão pouco o preço da manta que te cobre.
XXXIV
Orvalho, fenómeno ou dádiva?
Ou serão apenas lágrimas
Que a Mãe-Natureza chora,
Para lavar as chagas infligidas
Pelos desmandos do homem,
Que a desrespeita e ignora.
XL
Fernando, o dos poemas;
Pessoa, que muito estimo.
Alma e palavras supremas
De poeta grado, legítimo.
XLI
Toda a Natureza inteira,
Rejubila de vida e cor.
Desabrocham cânticos e a flor,
Desvenda a luz derradeira.
Toda a gente feliz de fio-a-pavio.
Em cada cortejo uma dança
Com alardes de esperança
No gerar de vida no fim do cio.
XLII
As
arestas das pedras,
Multiformes e milenares;
Escudo da hostilidade do mundo;
Protecção, quase maternal,
Dos que acreditam
Na bondade dos homens.
XLIII
Como é
bom desfrutar o remanso de fim de tarde,
Ouvindo o murmúrio lânguido das águas do rio;
Sentir o cheiro da terra prenhe…que Deus a guarde!
Para que o meu sonho não seja apenas um desvario.
Se entretanto, de tanta paz, cair nos braços de Morfeu,
E os meus olhos perderem tão balsâmica contemplação,
Que não percam a esperança que o meu sonho lhes deu,
De verem no sorriso de uma criança… a obra da criação.
Que os últimos raios de sol me tirem desta letargia,
Para sentir o pulsar da vida em todo o seu esplendor;
Vivamo-la, intensamente, como se fosse o derradeiro dia,
Na busca incessante da partilha e do sublime amor.
Constrói os teus caminhos alicerçados na probidade,
E se apesar disso, sem razão, for madrasta a tua desdita,
Não te resignes, luta sem tréguas pela felicidade,
Que um dia ela virá na luz de uma estrela bendita.
XLIV
O
silêncio dilui-se entre os dedos!
O eco das palavras é o próprio silêncio,
Que guardo na palma da mão.
As silhuetas, do meu próprio destino,
Avançam e dançam diante de mim;
Extensões do meu corpo habitado
Por silêncios e palavras.
Ó vento: sossega por um momento!
E
deixa-me ouvir o interior do silêncio;
A segredar-me palavras prenhes
De vida e de esperança,
Num amanhã sem chuva.
XLV
Neste vai
e vem vertiginoso da vida…
Deixamos, distraidamente, passar os anos
Em correria louca, fúria desabrida,
E não vemos o quão nos causa danos.
Não prestamos atenção àquele amigo,
Que dela, em altura adversa, tanto necessita.
Pobres narcisistas olhando para o umbigo!
Ignorando a criança que com fome grita.
Não escutamos a música das ondas do mar,
A melodia das aves no frenesim do alvorecer,
Os conselhos dos velhos que têm para nos dar,
Preferindo, insensatamente, fingir tudo saber.
Desprezando a sua infinita sabedoria secular;
Fechamo-nos na concha negra da arrogância…
Mais importante que receber … é saber dar;
Aquilo que não se possui em abundância.
O egoísmo e a ambição corrompem as mentalidades;
Transformando-nos em insaciáveis predadores,
Capazes das mais atrozes e infames crueldades;
Aniquilamos os fracos para sermos os vencedores.
XLVI
Eis-me
chegado
Ao último patamar,
Onde tudo é mensurável,
Escrutinado.
Para trás ficaram sombras
E horizontes de silêncio.
Estou de costas voltadas para o mundo.
Não ouço o seu discurso gasto,
Esgotado.
Desta lonjura já só escuto;
As palavras lúcidas da montanha
Num murmúrio plácido e melancólico.
XLVII
Inquilina
d’ um céu que já foi seu
A ave
suspendeu o voo.
Jaz exangue na poeira da estrada,
Desiludida,
cansada.
Dou-lhe o meu sorriso,
Afinal, somos companheiros de jornada.
XLVIII
Trabalhador
vergado de sol a sol,
Não passas de uma insignificante cifra.
Malgrado o esforço és mais um no rol
De quem, ignóbil e vilmente te esmifra.
Ceifeira trigueira que cegas, o pão
Com o sangue e o suor do teu rosto;
À noite, cansada, deitada no chão
Finges amar o teu homem com gosto.
Pescador sem rumo nem hora,
Se do teu lanço o peixe for parco;
Lança de novo as redes, agora,
Que Deus no céu já viu o teu barco.
Lavrador que esventras, a terra
Com o arado da tua esperança;
A semente que a tua alma encerra,
Germinará, nos olhos de uma criança.
XLIX
Renascida
da água e do fogo,
A palavra dita assim,
Na fímbria da página,
Sem preconceitos ou falsos ornatos;
É o começo de tudo.
É o peão da mente
Que o xadrez da tirania
Nunca vence.
L
Caminho
Dobrando a curva
Vencendo a recta
Sozinho;
Já vejo a meta.
Anseio que a etapa
Não endureça.
Não aspiro ganhar
Nem perder;
Só quero chegar
Antes que anoiteça.
LI
Árvore!
Ramos de vida,
Mãe solitária
Sombra solidária,
Tantas vezes esquecida.
És do mundo, universal!
Metafísica da raiz
Essência d’ um país;
A florir um riso verde, real.
LII
Atravessei
a cidade toda,
De um para o outro lado,
Vagarosamente;
Com o vagar de quem não tem pressa
De chegar a lado nenhum.
Reconheci todos os recantos
Onde guardo segredos,
Todos os pássaros,
Toda a folhagem dos arvoredos,
Que se agita à passagem do vento.
Só não me reconheci a mim,
Porque dos meus passos, já não ecoa
A inocência, do meu tempo de criança.
LIII
Apetece-me
escrever no meu canto,
Agora, neste preciso momento
Neste inexorável segundo.
Todos temos direito a ter um canto;
Até, tu meu irmão, colecionador de infortúnios.
Neste canto de versos sem estrelas nem sois,
Vou fazer a manutenção das memórias
Para que sobrevivam à voragem do tempo;
Num tempo de poucas glórias.
LIV
Acabo de
chegar de um lugar que só eu sei,
Que só eu conheço.
De nada valeria haver alguém, que conhecesse,
Esse lugar que só eu conheço;
Nunca o haveria de ver como eu.
Mesmo que usasse os meus olhos
Não veria o azul do céu que eu vejo.
Porque o meu azul é o mais azul de todos
Os azuis que já foram catalogados.
Trouxe no bornal, feito de uma réstia de pano
Do agasalho de todos os invernos,
Centelhas de luz, do ígneo pôr-do-sol no mar azul;
Igual ao azul do céu, que só eu vejo.
LV
O dia
nasceu às avessas,
Com as aves voando para trás
Num voo desesperado;
Ansiando retornar ao ovo materno,
Donde só sairão quando os dias nascerem
Como nascem as flores;
Sem brocados, mas livres.
LVI
Aqui,
neste mar de longas horas,
Onde a Terra e o Sol se irmanam em segredo
Para céus nunca sonhados;
Ouço cânticos plangentes
Acompanhados por lágrimas salgadas
De marinheiros inflamados;
Corroídos de saudade de suas Mães
E da Pátria, suas amadas.
LVII
Resvalam
na apatia as palavras dos sábios e,
ecoam tonitruantes as dos deuses inúteis;
umas e outras são o espectro da
inutilidade brejeira dos caudilhos,
que adoçam ou acidulam os nossos sonhos.
Soergue-te, ó mão agrilhoada!
Liberta-te da peçonha antiga e,
começa a desenhar o teu próprio caminho.
LVIII
Se somos
nós que nos levantamos da cama pela manhã
os mesmos que nela à noite nos deitamos,
é porque o dia e a noite existem para que a cama
nos conceda o sono e o acordar.
De permeio, há o luar que nos embala os sonhos e,
a luz matinal que no-los recorda.
A vida sem ser sonhada torna-nos infelizes
que é o que não queremos,
quando nos levantamos da cama pela manhã.
Tenho
para mim que é de manhã que acreditamos mais,
que ser feliz é o maior dos sonhos.
LIX
Havia um
pássaro na minha infância,
Que todas as manhãs,
No beiral do meu telhado poisava.
E cantava!
E cantava!
Fizesse sol, chuva, frio ou vento do sul…
Volvia sempre à mesma hora,
E do meu sonho me acordava.
E cantava!
E cantava!
No seu trinado suave como veludo
Trazia-me um raio de sol;
Qual mão que me aconchegava.
E cantava!
E cantava!
Um dia o pássaro não voltou
E julgando ouvir seu canto;
Minha alma chorava.
E chorava!
E chorava!
LX
Aveiro,
Cidade luz!
Ria,
De azul Abril,
Pintadas.
Moliceiro
Vogando, imortal,
Maresia em movimento
Enfrentando,
Nortadas.
O teu sal
Outrora,
Feito suor e sangue
Por mãos,
Maltratadas.
Terra
De heróis,
Navegadores
Vencendo rotas,
Alcançadas.
Símbolo
De Democracia,
De Liberdade
Nas asas de uma gaivota,
Conquistadas.
José Estevão
Tribuno emérito,
A sua memória e obra
Em merecida homenagem,
Lembradas.
São Gonçalinho
Santo casamenteiro,
Não prometas marido
Às solteiras, se já o deste às
Casadas.
Nota
São Gonçalo, tido como casamenteiro, é o santo padroeiro da minha freguesia natal: Vera Cruz. Em sua honra faz-se uma festa no Bairro da Beira Mar, lugar emblemático da freguesia, no domingo mais próximo do dia 10 de Janeiro. O elevado afecto, que as gentes do Bairro da Beira Mar sentem pelo santo, faz com que o tratem devota e carinhosamente por São Gonçalinho. Por vezes, também, quando se referem a ele utilizam as expressões "o meu santinho" ou "o meu menino". Na festa de São Gonçalinho é tradição atirar cavacas (pão doce e rijo) do cimo da capela aos mais necessitados, como pagamento de promessas feitas ao Santo.
LXI
Nas
recônditas lembranças improváveis
Do baú da minha mente,
Acendeu uma luz distante, amarela e profusa.
A luz, por ser amarela, só poder ser da torcida
Do candeeiro a petróleo que iluminava
As paredes e os tectos das minhas noites,
Nessa longínqua idade dos seis anos.
Ou seriam sete… talvez oito;
Eram oito com toda a certeza. Já lia bem,
Embora não entendesse tudo o que lia.
(Hoje entendo tudo o que leio,
Embora não leia tudo o que entendo).
Podia ter-me recordado dos deveres da escola;
Feitos à pressa, porque as brincadeiras já esperavam
No palco da rua, onde nos, transformava-mos em actores
De peças sempre improvisadas com cenários transparentes,
De lúcida alegria.
Podia ter rebobinado o filme das batalhas do faz de conta.
Lembras-te
mano?
Que bom seria, que nas guerras disparassem só balas de amizade, iguais às
nossas.
Podia ter-me recordado das naus que transportavam os nossos sonhos;
As aventuras de marinheiros em mares sem Adamastores.
Mas, o que aporta ao cais da minha memória com uma nitidez imarcescível;
É a recordação da minha primeira matiné, levado pela mão do meu avô materno.
O filme chamava-se, se bem me lembro: Marcelino, Pão e Vinho;
Joselito, o rouxinol das montanhas, com a sua voz, quase divina,
Fazia de conta, tal como nós, no mesmo palco da vida.
Carlos Pereira
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