Foto de Carlos Pereira
O CÃO E EU
Carlos Pereira
Atravessa o areal junto à linha da água quiçá a
linha da vida, suave passada, pelém de aspecto,
porém irradiando altivez; parece feliz,
tanto quanto eu por vê-lo, saboreando
a alegria de ser livre, apesar da madrasta sina
o ter abandonado a minguada condição.
O sol adocicado, beija-lhe o hirsuto pêlo,
um dos poucos aconchegos que adrega na
aziaga vida solitária.
De quando em vez, nariz espetado no chão,
farejando não se sabe o quê: talvez o rasto de
um companheiro da sua malograda estirpe.
Quão patéticos são os meus olhos,
apesar de lúcidos e poderem comover-se.
Sinto-me consolado por sabê-lo mais humano e
mais livre que muitos de nós; fosse um
pouco menos racional e conquistaria o mundo.
O mar rendido, numa onda mais afoita,
abraça-o generosamente com a sua milenar espuma.
Ninguém me vai roubar este quadro,
meio animal meio humano, pintado ao sol matinal
com a côr da melancolia pela mão do destino indomável.
Toda a minha carne se inunda de emoção, inarrável júbilo:
nenhuma exaustão ou fronteira, vai impedir esta dolorosa,
mas asséptica, mensagem da criação.
Quem sabe se ao entardecer
o céu não debruça sobre ele
um manto azul de esperança
forrado com lágrimas de sal.
Praia da Galé, 18.09.2020
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