CANAL DE SÃO ROQUE

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Foto de Gabriel Pereira




segunda-feira, 30 de março de 2020

O RAPAZ QUE ESCUTAVA OS GRILOS




Foto retirada da Net



          

O RAPAZ QUE ESCUTAVA OS GRILOS

 


I

 

Recordo o grilo,

quando era menino,

outrora.

Sou-o, ainda, pequenino,

agora,

quando escuto o seu trilo.

 

Grilo que trinas com as asas

canto vibrante;

instante encanto.

Nos campos ou nas casas

a qualquer distância,

perto ou mais distante;

é sempre o mesmo espanto

desde a inocente infância.

 

Vem-me á memória

aquelas tardes de verão,

encantadas,

felizes;

cada qual com a sua história.

Ouço o canto do grilo de então

e relembro as raízes

criadas,

etéreas, com o meu irmão.

 


II

 

Gira o pião no chão;

Apanhado entre os dedos
gira na mão.
Gira na mão o pião
e o alcatruz na nora.
Giram sem segredos
o pião redondo, veloz
e a nora decrépita, ronceira.
Fizeram do silêncio voz
que eu agora
recordo à minha maneira.

 

A terra amadureceu
toda inteira
e as feridas sararam
enquanto o pião rodopiou
e a água da nora ronceira
que sofrida jorrou
até ao céu onde pairaram
estrelas para a minha infância fagueira.

 

O pião continua a girar sem medos
mas a vetusta nora
foi condenada a outros degredos
tão dolorosos como os d'outrora.

 

                

III

 


Li Camões
e embarquei nas naus quinhentistas.
Venci todos os mares
e mais os da minha imaginação.
Reconheci as armas e os barões.
Pedi acomodação ao deus Lares.
Cruzei-me com o Adamastor;
Que emoção!
Desfiei, uma a uma todas as conquistas,
fui poeta e navegador.

 

                 

IV

 


Li Fernando Pessoa
com avidez de conhecimento
e sonhei com um novo império.
Conheci os heterónimos
e revi-me no guardador de rebanhos.
O valor da eclética obra ecoa
para além do mais longínquo hemisfério
e faz sonhar tantos poetas anónimos.
Que nunca a palavra esquecimento
seja a pátria de versos tamanhos.

 

 

V

 


El rei D. Dinis,
“O Lavrador”
Mandaste plantar
pinheiros em Leiria.
Foste feliz!

Cantaste sem cessar
a tua poesia:
eras poeta trovador.

 

Foste rei
defensor da agricultura.
Amaste a tua grei.
Foste leal,
trovador  poeta,
asceta,
rei de Portugal
e da cultura.

 

                 

VI

 


El-rei D. Sebastião!
Foste a Alcácer morrer
a defender
este chão longe.
Foste soldado, cristão
monge.
Com a espada na mão
sem retroceder
foste a Alcácer Quibir
renascer
para não mais vir.

 

Passaram meses,
anos;
teu feito de guerreiro
não foi olvidado.
A tua grei rejeitou
sem hesitar
falsos desenganos
e criou
a lenda em que o Desejado
haveria
de regressar
um dia
numa manhã de nevoeiro.

 


VII

 


Eram meninos
maltrapilhos
de rostos felizes,
corações benignos;
filhos,
do vento e da má sorte.
Criavam raízes
na sã amizade;
nos olhos a serenidade
de quem finta a vida e a morte.

 

Jogavam no estádio da rua
de palco vazio.
A vitória era sempre sua;
Nem a vida
nem a bola
sofriam desvio
até ser conseguida.
No chão a sacola
imobilizada,
esquecida.
Cada finta de corpo esguio
adiava
os deveres da escola.

 

                 


VIII

 


A forja incendeia
a vida do ferreiro
e o ferro por moldar.
Faz uma candeia
e um farol altaneiro
que no alto mar,
ou no mundo inteiro,
alumie sem peia.

 

Faz uma grade
com uma cruz de cristo
que no cume do monte,
aprisione a maldade.
Aviva o lume;
começa a longa ponte.
Afia o gume
da espada do bem que há-de
vencer toda a crueldade:

 



IX

 


Ergo-me do covo poço,

Abismo milenar
Onde me condeno,
Tantas vezes perdido.
Outras tantas, erguido;
Dessa força me remoço.

 

Sou herói no meu próprio caminho.
A cada passo renasço
Sozinho.
Da solidão faço
Um poema inelutável
E o esboço de um deserto
Sem aridez; só viço imensurável.

Busco a verdade e a luz
Por toda a Terra onde houver
Mentes em incandescência.
A implacável ignorância reduz
A chama do saber
E dá brilho à sinistra decadência.

 

Vou continuar a prosseguir
O meu caminho.
Medo já não tenho,
Do negro poço.
Passo a passo vou iludir
O biltre fosso
Carregando o Lenho
De verde pinho.




X


Alentejo!

Terra soalheira

Terra abandonada

Grão na eira

Chão desigual

Moura encantada

Linda ceifeira

Coração de Portugal!

 

Terra morena

Seara madura

Paisagem serena

Vida dura

Sol no terreiro

Luz sem igual

Povo obreiro

Generoso celeiro

Pão de Portugal!

 

Cante alentejano

Canto primitivo

Património mundial

Sentimento humano

Povo emotivo

Voz de Portugal!

 

XI

 


Sou poeta de versos límpidos e serei

Incapaz de ser doutra forma.

À poesia há muito me dei;

Faço poemas sem regra ou norma.

 

Só às palavras reconheço lei

E com elas a estrofe desenforma

O poema, que a cada dia, renovarei.

A palavra, só amada, se conforma.

 

Da palavra, minha essência e morada,

Serei pertinaz defensor, paladino,

Para que nunca seja, ultrajada.

 

Irmanados defendemos um destino:

Tu permaneças sempre livre, não agrilhoada;

Eu, em cada poema, seja teu peregrino.

 

XII

 

 

Deixem-me ser poeta sem regras,

sem limites, sem ornatos.

 

Deixem-me sentir o vento norte

acariciar as rugas da face e,

saborear a odorosa maresia

inundando as minhas intemporais narinas.

 

Deixem-me andar com os pés nus

sobre o lodo dos pântanos seculares e

fazer vénias aos arbustos lacustres, inocentes,

despojados de sórdidas intenções.

 

O meu caminho é um poema inacabado,

cheio de palavras túrgidas

anotadas nas margens do livro do tempo.

 

Deixem-me só com os pássaros de fogo

a desenharem no céu, ainda sem estrelas,

orquestras de virgens ninfas, tocando liras

numa lúbrica sonata à nascitura lua.

 

Deixem-me ser a canção de todos os trovadores,
carne mártir dos sofredores,
música em poema épico da vida e da morte;
dos sem sorte,
dos esconjurados,
dos desabrigados,
dos sem voz,
dos sem fim,
dos que esperam de nós,
dos que sabem de mim.

 

                 

XIII

 

Casa pequena! Muito pequena!

Grande de mais para a nossa pobreza.

A porta da cozinha tinha um postigo

Que dava para a rua de curva serena.

Quisera eu esquecer tamanha singeleza,

Quisera, mas não consigo.

 

Tinha pátio e um pequeno jardim

Com flores várias e uma macieira.

Tinha um poço, tanque para lavar a roupa

E balde com uma corda que parecia não ter fim;

Uma horta, galinhas e uma coelheira:

(Porque com animais de bico pouco se poupa).

 

Casa pequenina! Muito pequenina!

Grande de mais para não sonhar.

A porta da cozinha tinha um postigo;

Silhueta adulta num corpo de menina.

Quisera eu deixar de a recordar,

Quisera, mas habitará sempre comigo.

 

XIV

 

No chão longínquo da minha origem,

Sulcam águas de felicidade

Nos regatos da minha infância.

Desse tempo recordo-me,

Do olhar sereno, feliz, da minha mãe;

Orgulhosa da sua prole.

 


XV

 


o poema mais puro habita em mim. por isso

sei-o de cor. o meu pai levava-me às

cavalitas porque era de noite e eu não via

onde punha os pés. o meu pai atravessou

o esteiro a nado comigo às costas, porque eu

ainda não sabia nadar e o regresso a casa

era mesmo ali depois da outra margem.

 

                 

XVI

 


É já longo o caminho

Que percorri

Desde o teu ventre, mãe.

Quando me recordo de ti

Chorando baixinho,

Meu coração chora também.

 

Venho pedir-te

Que não te martirizes:

Eu e os meus irmãos,

Somos felizes!

Sempre que damos as mãos,

Lembramos as nossas raízes.

 

Olha, tenho uma alegria

Para te dar:

Já tens mais netos

E dos mais velhos,

Lindos bisnetos;

Belos espelhos

Para o teu eterno olhar.

 



XVII                       

 


No bolso dos calções
um naco de broa.
Nos pés descalços
a ligeireza
de quem voa.
Nos corações
uma singeleza
sem percalços.

 

Despidos, em pelota;
Um artístico mergulho,
no canal da ria.
Braçada a braçada,
voamos como uma gaivota.
No ar suave barulho
prenúncio de alegria
amizade abençoada.

 

Um derradeiro mergulho,
nesta bela tarde
de Julho.
O sol ainda arde!
Num torpor
nossos corpos molhados
anseiam pelo seu calor.

Enxugados
é chegada a hora
de dividir a broa
com a gaivota, arguta, que voa
no mesmo ritual fremente,
antes de irmos embora.

 

 

 XVIII

 

Ah! Flor da juventude

infância abençoada;

fui feliz quanto pude.

De todos fui amigo;

em cada aventura realizada

fiz da amizade sólido abrigo.

 

A fértil imaginação

não conhecia limites, fronteiras;

nascia da pueril inocência

de quem só quer chegar a qualquer lado.

Nem inquietação

nem medo

de anunciadas barreiras,

consentidas rédeas da adolescência,

que toma como seu todo o mundo conquistado

e disso não faz segredo.

 

XIX

 

Atravessa o rio, saltita de pedra em pedra e
imagina-te no céu a saltar de estrela em estrela.

 

Corre de arbusto em arbusto e imagina-te uma ave

a saltar de ramo em ramo numa velha árvore.

 

Olha o pôr-do-sol na linha do horizonte num mar distante e,

imagina-te num barco a navegar numa rota de esperança.

 

XX

 

A rã coaxa no charco.

O espelho do rio resplandece a luz do sol.

Viva a vida! Viva a natureza!             

Abraça o mundo.

 

XXI

 

Labutas no filão

De ouro.

Lutas pelo patrão

Como um touro

Briga pela vida;

Obstinado,

Enraivecido.

Procuras no chão

Novo caminho fadado,

Para outra partida.

 

XXII

 

Mãos fortes, calejadas

Seguras a enxada dura;

Engelhadas, gretadas

Por tantos anos contados.

Esventras a terra madura

Por tantos infernos passados.

 

XXIII

 

O pastor segura o cajado na mão;

rugas no rosto, sulcos na terra gretada,

feitos pelo sol. Na outra, segura os cornos da solidão,

que rasga sulcos e rugas na alma atormentada.

 

A seus pés o fiel amigo – Tejo –

Fita-o com o seu olhar tão nu;

dizendo em solilóquio: não te invejo,

pois sou pastor como tu.


XXIV

 

Toupeira,

De olhos abertos.

Picareta certeira

Cavando o carvão.

Gestos certos

Na quase escuridão.

 

 

Barreira,

Que não reduz

A tua vocação.

Dos teus escolhos

Gerarás luz;

Da tua cegueira

Outros olhos

Se iluminarão.

 

XXV

 

Teu barco teu pilar, teima,

em labutar.

Não exageres na freima

que te pode matar.

 

Lanças as redes e a sorte

no teu barco pequenino.

Foges da vida e da morte,

desde menino.

 

XXVI

 

Não sou hoje mais do que fui ontem.

Admitir isto é a minha última alucinação:

é o meu lúcido momento ao lusco-fusco do entardecer

que tarda a estrela d' alva.

 

Mudar o mundo era um dos meus propósitos:

Fiz tão pouco para isso; pouco é igual ao nada que sou.

 

A pouca coragem ou a falta dela,

inibe o pensamento colectivo, dificulta a acção individual

e pode, até, perigar a peregrina liberdade.

 

Todos os meus amigos me confortaram

com abraços de bondade simiesca, dizendo:

que te não fique, mágoa, esmorecido o preito ou

apoucamento pela empresa em vão, porque também nós,

artífices do nada fazer, solidários somos; se algum feito houve,

parca memória nos abordou ao cais dos dias.

 

Agastados ficamos, tão leve punição,

pela inoperante cidadania e pela asquerosa

insensibilidade perante o sofrimento do mundo

tanto mais que, a vida, nos tem dado de presente

não poucas vezes o privilégio da ausência de tristeza.

 

Seguir um lema mesmo que circunstancial, é para nós,

humanos, uma das maiores arduidades; em contraciclo

temos a sedutora habilidade da não presunção do objectivo

para não, em caso de falência, não termos

de congeminar bastardas desculpas.

 

Nada é mais atroz do que caminhar indiferente

pela estrada incendiada de rancores ou por inóspitos trilhos,

atapetados por falsos confortos miríficos.

 

Só nos resta a fuga para o arrependimento,

para o auto flagelo do pensamento,

para o prazer mundano:

caminho tão desprezível quanto a nossa vontade.

                    

XXVII

 

Lá vai o “vouguinha”

rio Vouga acima

serra abaixo aos tropeções

pela serpenteante linha;

faz versos com rima

e nuvens de fumo com corações.

 

Lá vem o “vouguinha”

junto ao rio.

Venceu vales e montes;

deixou para trás a serra,

dessedentou-se nas fontes.

Pouca terra! Pouca terra!

Feliz de quem o viu

à tardinha, altivo,

a regressar à origem.

Meu olhar eternamente cativo

como o olhar de uma virgem.

 

XXVIII

 

Na escola aprendi

que a mítica sabedoria

é aço, na forja, por temperar.

Quando li

o primeiro livro de poesia,

senti

que também podia

aprender a sonhar.

 

De todas as lições que escutei

nenhuma foi definitiva;

mas hoje, tudo o que sei,

começou a germinar

no tempo em que era menino

e a vontade de aprender tão viva,

que mesmo a brincar

comecei a desenhar

o meu auspicioso destino.

 

XXIX

 

Queria, tanto, voltar a montar

o meu cavalo de pau;

feito de um cabo de vassoura,

cuja utilidade já se finara;

não para percorrer caminhos de antanho,

mas para fazer a viagem de regresso

à aventurada infância.

Nesse tempo os sonhos, tinham o tamanho

da mais longa ocidental distância.

 

XXX

 

Nasci num tempo em que os meninos,

acendiam estrelas para verem na noite escura.

Havia muito céu mas a terra era bem dura.

 

Havia pouca terra para uns

e muito céu para alguns.

 

XXXI

 

Trago o destino às costas e,

Não me canso.

 

Trago o sol nos olhos e,

Não me deslumbro.

 

Trago a noite na alma todo o dia

Até voltar a ser noite e,

Não esmoreço.

 

Trago a esperança num oásis

Que não distingo e,

Não desisto.

 

Trago a aridez do deserto

Na secura da minha boca e,

A minha sede resiste.

 

Trago as palavras mortas de fome e,

A minha voz subsiste.


XXXII

 

Alma nobre de um povo

Leal no apego à terra

Espírito altruísta e probo

Na grandeza que encerra

Trigueira seara de pão

Encanto do nosso país

Jardim de aromas e solidão

Ondas de trigo com gente feliz

 

XXXIII

 

Os pés do menino, descalços, seguiam

o sulco húmido do arado, puxado

pela dócil parelha de vacas amarelas,

que o Ti Xico, sabiamente conduzia

com a mão esquerda, tisnada

pelo sol de muitos anos. Na direita,

uma pequena vergasta de vime,

à qual só dava serventia na mudança de rego,

batendo mais na canga do que nos nobres animais;

ajuda prestimosa na manobra rotineira

a cada novo sulco esventrado à terra.

Era visível de forma indelével,

a conivente irmandade entre homem e animais.

As lavandiscas esvoaçavam num afã meticuloso

na esperança de uma refeição de vermes subtérreos,

que o arado, generosamente, punha a nu.

Todos trabalhavam para granjear o árduo

sustento. O menino era, na maior e mais sábia

sala de aula, um atento discípulo.

 

XXXIV

 

Defronte da minha casa há uma casa igual à minha

Só porque tem janelas e portas, mas não é da mesma cor;

A minha é branca, toda branca,

Menos a faixa em baixo a toda a volta que é azul;

Azul muito escuro, tão escuro que parece preto.

Quase toda a gente pensa que é preto, mas não é.

É azul. Se fosse preto, pensariam que era azul?

- Às tantas, se calhar.

Há pessoas que confundem as cores

E não se preocupam com isso. Fazem bem.

Que importância tem não saber a cor das casas

Ou até, confundi-las, mesmo que seja de propósito.

O que não podemos confundir são as pessoas

Que moram dentro delas ou fingem morar.

Nunca olho pela janela da minha casa

Para a casa defronte igual á minha,

Que não é toda branca nem tem a faixa azul,

Escuro, que parece preto.

Assim, não confundo as cores, nem as pessoas.

 

XXXV

 

Aqui onde o mar conflui com a vida,

comando um exército de silêncios;

sou apenas eu, só eu, poeta sem máscara e

versos sem mentira, diáfanos, como a luz.

Há um baú enterrado na areia cheio de segredos,

meus e teus, que conhecemos inequivocamente.

Mas há um, apenas um, que tu desconheces.

É o mais impactante de todos, aquele que mais me agrada;

mas tu és meu amigo e confidente, e, vou revelar-to:

Sou tão humílimo como tu, ó mar.

 

XXXVI

 

É-me difícil aceitar os estímulos viscosos

vindos de quem se julga superior aos demais.

 

Admito que me faltam os tiques dos meninos

que estudaram num qualquer colégio francês ou alemão.

Que sou rude com as palavras e com os gestos.

Confesso que nunca pude dizer:

- O meu pai mandou o chauffeur buscar-me à escola no mercedes

ou quando chegar a casa a Maria vai preparar um lanche com leite e chocolate,

torradas com manteiga, queijo e compota de morango.

Mas pude dizer:

- Joguei à bola, feita de uma meia velha já bastante remendada

e com trapos também velhos e gastos. Apanhei girinos nas poças de água

nascidas das primeiras chuvas de Outono.

Sabia o nome dos pássaros pelo seu canto e tinha amigos leais.

Confesso que nunca pude dizer:

- O meu pai levou-me a visitar o jardim zoológico.

Mas pude dizer:

- O meu pai levou-me à pesca, ensinou-me a utilizar a cana,

os diversos tipos de anzol e a panóplia de iscos.

 

É-me difícil aceitar os estímulos viscosos

vindos de quem se julga superior aos demais.

 

Avança. Marcha. Bate com vigor a bota na parada.

Bate a continência. Salva a nação e a aparência.

Olha a boina, recruta, está mal colocada.

Ó nosso pronto quem o ensinou a marchar?

Que falta de elegância, que inoperância.

Ó nosso cabo leve o jipe ao comando que o nosso general

quer ir ao ninho matar saudades da sua jovem namorada.

Acabaram as munições. Acabou a guerra.

Quem a ganhou?

- Fomos nós, que tínhamos poemas de combate em vez de aviões e de um

submarino decrépito e ferrugento, que nunca tirou a cabeça debaixo de água;

se fosse areia seria uma avestruz.

Truz! Truz!

Quem é?

- Somos nós que fomos ao lado de fora, para aquilatar a veracidade do que dizem.

Mas é mentira o que estão a dizer, o que disseram e o que irão dizer no futuro.

 

É-me difícil aceitar os estímulos viscosos

vindos de quem se julga superior aos demais.

 

 O tempo e os rios passam lentos e é tão difícil sofrer neste país;

 talvez por isso o nosso extermínio não seja exequível.

 

 XXXVII

 

 Sou apenas um, dentre muitos,

que não está no meio da estrada que te leva.

 

Faço parte da parte que sabe que em muitos dias

pouco ou nada comes durante o dia.

 

Rebolo na relva e exalo o cheiro húmido da terra

nos finais do outono.

 

Faço parte da parte que sabe que vais sentir frio

nos ossos no inverno da cama.

 

Ouço a música das estrelas nas noites de luar

e sei de cor as canções que me ensina o mar.

 

 

Faço parte da parte que sabe que tu já perdeste

a esperança de sonhar.

 

Dá-me a tua mão.

Vou levar-te onde há gente que chora por ti.

Que traz uma cebola na algibeira para não usar

as suas verdadeiras lágrimas ( usam as do crocodilo)

porque podem fazer falta

para desgraças mais importantes que a tua.

 

A ti, menino da rua, já te secaram as lágrimas

e finges ser feliz na tua humildade.

 

Faço parte da parte que sabe que te roubam a mocidade,

mas também sei que jamais te usurparão a dignidade.


XXXVIII

 

Para ti não é preocupação o caldo

Da panela magra no lume do pobre;

Nem o seu agasalho a preço de saldo;

Tão pouco o preço da manta que te cobre.

 

                                    

XXXIV

 

Orvalho, fenómeno ou dádiva?

Ou serão apenas lágrimas

Que a Mãe-Natureza chora,

Para lavar as chagas infligidas

Pelos desmandos do homem,

Que a desrespeita e ignora.

 

XL

 

Fernando, o dos poemas;

Pessoa, que muito estimo.

Alma e palavras supremas

De poeta grado, legítimo.

 

XLI

 

Toda a Natureza inteira,

Rejubila de vida e cor.

Desabrocham cânticos e a flor,

Desvenda a luz derradeira.

 

Toda a gente feliz de fio-a-pavio.

Em cada cortejo uma dança

Com alardes de esperança

No gerar de vida no fim do cio.

 

XLII

 

As arestas das pedras,
Multiformes e milenares;
Escudo da hostilidade do mundo;
Protecção, quase maternal,
Dos que acreditam
Na bondade dos homens.

 

XLIII

 

Como é bom desfrutar o remanso de fim de tarde,
Ouvindo o murmúrio lânguido das águas do rio;
Sentir o cheiro da terra prenhe…que Deus a guarde!
Para que o meu sonho não seja apenas um desvario.

Se entretanto, de tanta paz, cair nos braços de Morfeu,
E os meus olhos perderem tão balsâmica contemplação,
Que não percam a esperança que o meu sonho lhes deu,
De verem no sorriso de uma criança… a obra da criação.

Que os últimos raios de sol me tirem desta letargia,
Para sentir o pulsar da vida em todo o seu esplendor;
Vivamo-la, intensamente, como se fosse o derradeiro dia,
Na busca incessante da partilha e do sublime amor.

Constrói os teus caminhos alicerçados na probidade,
E se apesar disso, sem razão, for madrasta a tua desdita,
Não te resignes, luta sem tréguas pela felicidade,
Que um dia ela virá na luz de uma estrela bendita.

 

 XLIV

 

O silêncio dilui-se entre os dedos!
O eco das palavras é o próprio silêncio,
Que guardo na palma da mão.
As silhuetas, do meu próprio destino,
Avançam e dançam diante de mim;
Extensões do meu corpo habitado
Por silêncios e palavras.
Ó vento: sossega por um momento!

E deixa-me ouvir o interior do silêncio;
A segredar-me palavras prenhes
De vida e de esperança,
Num amanhã sem chuva.

 

XLV

 

Neste vai e vem vertiginoso da vida…
Deixamos, distraidamente, passar os anos
Em correria louca, fúria desabrida,
E não vemos o quão nos causa danos.

                                  
Não prestamos atenção àquele amigo,
Que dela, em altura adversa, tanto necessita.
Pobres narcisistas olhando para o umbigo!
Ignorando a criança que com fome grita.

Não escutamos a música das ondas do mar,
A melodia das aves no frenesim do alvorecer,
Os conselhos dos velhos que têm para nos dar,
Preferindo, insensatamente, fingir tudo saber.

Desprezando a sua infinita sabedoria secular;
Fechamo-nos na concha negra da arrogância…
Mais importante que receber … é saber dar;
Aquilo que não se possui em abundância.

O egoísmo e a ambição corrompem as mentalidades;
Transformando-nos em insaciáveis predadores,
Capazes das mais atrozes e infames crueldades;
Aniquilamos os fracos para sermos os vencedores.

 

 XLVI

 

Eis-me chegado
Ao último patamar,
Onde tudo é mensurável,
Escrutinado.
Para trás ficaram sombras
E horizontes de silêncio.
Estou de costas voltadas para o mundo.
Não ouço o seu discurso gasto,
Esgotado.
Desta lonjura já só escuto;
As palavras lúcidas da montanha
Num murmúrio plácido e melancólico.

 

XLVII

Inquilina d’ um céu que já foi seu

A ave suspendeu o voo.
Jaz exangue na poeira da estrada,

Desiludida, cansada.
Dou-lhe o meu sorriso,
Afinal, somos companheiros de jornada.

 

XLVIII

 

Trabalhador vergado de sol a sol,
Não passas de uma insignificante cifra.
Malgrado o esforço és mais um no rol
De quem, ignóbil e vilmente te esmifra.

Ceifeira trigueira que cegas, o pão
Com o sangue e o suor do teu rosto;
À noite, cansada, deitada no chão
Finges amar o teu homem com gosto.

Pescador sem rumo nem hora,
Se do teu lanço o peixe for parco;
Lança de novo as redes, agora,
Que Deus no céu já viu o teu barco.

Lavrador que esventras, a terra
Com o arado da tua esperança;
A semente que a tua alma encerra,
Germinará, nos olhos de uma criança.

 

XLIX

 

Renascida da água e do fogo,
A palavra dita assim,
Na fímbria da página,
Sem preconceitos ou falsos ornatos;
É o começo de tudo.
É o peão da mente
Que o xadrez da tirania
Nunca vence.

 

L

 

Caminho
Dobrando a curva
Vencendo a recta
Sozinho;
Já vejo a meta.
Anseio que a etapa
Não endureça.
Não aspiro ganhar
Nem perder;
Só quero chegar
Antes que anoiteça.

 

 LI

 

Árvore! Ramos de vida,
Mãe solitária
Sombra solidária,
Tantas vezes esquecida.

És do mundo, universal!
Metafísica da raiz
Essência d’ um país;
A florir um riso verde, real.

 

LII

 

Atravessei a cidade toda,
De um para o outro lado,
Vagarosamente;
Com o vagar de quem não tem pressa
De chegar a lado nenhum.
Reconheci todos os recantos
Onde guardo segredos,
Todos os pássaros,
Toda a folhagem dos arvoredos,
Que se agita à passagem do vento.
Só não me reconheci a mim,
Porque dos meus passos, já não ecoa
A inocência, do meu tempo de criança.

 

 LIII

 

Apetece-me escrever no meu canto,
Agora, neste preciso momento
Neste inexorável segundo.
Todos temos direito a ter um canto;
Até, tu meu irmão, colecionador de infortúnios.

Neste canto de versos sem estrelas nem sois,
Vou fazer a manutenção das memórias
Para que sobrevivam à voragem do tempo;
Num tempo de poucas glórias.

 

LIV

 

Acabo de chegar de um lugar que só eu sei,
Que só eu conheço.
De nada valeria haver alguém, que conhecesse,
Esse lugar que só eu conheço;
Nunca o haveria de ver como eu.
Mesmo que usasse os meus olhos
Não veria o azul do céu que eu vejo.
Porque o meu azul é o mais azul de todos
Os azuis que já foram catalogados.

Trouxe no bornal, feito de uma réstia de pano
Do agasalho de todos os invernos,
Centelhas de luz, do ígneo pôr-do-sol no mar azul;
Igual ao azul do céu, que só eu vejo.

 

LV

 

O dia nasceu às avessas,
Com as aves voando para trás
Num voo desesperado;
Ansiando retornar ao ovo materno,
Donde só sairão quando os dias nascerem
Como nascem as flores;
Sem brocados, mas livres.

 

LVI

 

Aqui, neste mar de longas horas,
Onde a Terra e o Sol se irmanam em segredo
Para céus nunca sonhados;
Ouço cânticos plangentes
Acompanhados por lágrimas salgadas
De marinheiros inflamados;
Corroídos de saudade de suas Mães
E da Pátria, suas amadas.

 

LVII

 

Resvalam na apatia as palavras dos sábios e,
ecoam tonitruantes as dos deuses inúteis;
umas e outras são o espectro da
inutilidade brejeira dos caudilhos,
que adoçam ou acidulam os nossos sonhos.

Soergue-te, ó mão agrilhoada!
Liberta-te da peçonha antiga e,
começa a desenhar o teu próprio caminho.

 

 LVIII

 

Se somos nós que nos levantamos da cama pela manhã
os mesmos que nela à noite nos deitamos,
é porque o dia e a noite existem para que a cama
nos conceda o sono e o acordar.
De permeio, há o luar que nos embala os sonhos e,
a luz matinal que no-los recorda.
A vida sem ser sonhada torna-nos infelizes
que é o que não queremos,
quando nos levantamos da cama pela manhã.

Tenho para mim que é de manhã que acreditamos mais,
que ser feliz é o maior dos sonhos.

 

LIX

 

Havia um pássaro na minha infância,
Que todas as manhãs,
No beiral do meu telhado poisava.
E cantava!
E cantava!

Fizesse sol, chuva, frio ou vento do sul…
Volvia sempre à mesma hora,
E do meu sonho me acordava.
E cantava!
E cantava!

No seu trinado suave como veludo
Trazia-me um raio de sol;
Qual mão que me aconchegava.
E cantava!
E cantava!

Um dia o pássaro não voltou
E julgando ouvir seu canto;
Minha alma chorava.
E chorava!
E chorava!

 

LX

 

Aveiro,
Cidade luz!
Ria,
De azul Abril,
Pintadas.


Moliceiro
Vogando, imortal,
Maresia em movimento
Enfrentando,
Nortadas.

O teu sal
Outrora,
Feito suor e sangue
Por mãos,
Maltratadas.

Terra
De heróis,
Navegadores
Vencendo rotas,
Alcançadas.

Símbolo
De Democracia,
De Liberdade
Nas asas de uma gaivota,
Conquistadas.

José Estevão
Tribuno emérito,
A sua memória e obra
Em merecida homenagem,
Lembradas.

São Gonçalinho
Santo casamenteiro,
Não prometas marido
Às solteiras, se já o deste às
Casadas.

 

Nota

São Gonçalo, tido como casamenteiro, é o santo padroeiro da minha freguesia natal: Vera Cruz. Em sua honra faz-se uma festa no Bairro da Beira Mar, lugar emblemático da freguesia, no domingo mais próximo do dia 10 de Janeiro. O elevado afecto, que as gentes do Bairro da Beira Mar sentem pelo santo, faz com que o tratem devota e carinhosamente por São Gonçalinho. Por vezes, também, quando se referem a ele utilizam as expressões "o meu santinho" ou "o meu menino". Na festa de São Gonçalinho é tradição atirar cavacas (pão doce e rijo) do cimo da capela aos mais necessitados, como pagamento de promessas feitas ao Santo.

 

LXI

 

Nas recônditas lembranças improváveis
Do baú da minha mente,
Acendeu uma luz distante, amarela e profusa.
A luz, por ser amarela, só poder ser da torcida
Do candeeiro a petróleo que iluminava
As paredes e os tectos das minhas noites,
Nessa longínqua idade dos seis anos.
Ou seriam sete… talvez oito;
Eram oito com toda a certeza. Já lia bem,
Embora não entendesse tudo o que lia.
(Hoje entendo tudo o que leio,
Embora não leia tudo o que entendo).
Podia ter-me recordado dos deveres da escola;
Feitos à pressa, porque as brincadeiras já esperavam
No palco da rua, onde nos, transformava-mos em actores
De peças sempre improvisadas com cenários transparentes,
De lúcida alegria.
Podia ter rebobinado o filme das batalhas do faz de conta.

Lembras-te mano?
Que bom seria, que nas guerras disparassem só balas de amizade, iguais às nossas.
Podia ter-me recordado das naus que transportavam os nossos sonhos;
As aventuras de marinheiros em mares sem Adamastores.
Mas, o que aporta ao cais da minha memória com uma nitidez imarcescível;
É a recordação da minha primeira matiné, levado pela mão do meu avô materno.
O filme chamava-se, se bem me lembro: Marcelino, Pão e Vinho;
Joselito, o rouxinol das montanhas, com a sua voz, quase divina,
Fazia de conta, tal como nós, no mesmo palco da vida.

 

Carlos Pereira

 

 

 

 

 

 

 

                                    

 

 

 

 

 

 



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