CANAL DE SÃO ROQUE

CANAL DE SÃO ROQUE

Foto de Gabriel Pereira




terça-feira, 17 de novembro de 2020

AMOR REABERTO

 

Foto de Carlos Pereira




AMOR REABERTO

Carlos Pereira

 

Incessante procura do caminho certo

para a casa sonhada onde a ternura golpeia,

com as tuas mãos simples. Contigo por perto

o amor fervilha, indomável, não se apeia.

 

Subiremos as ferventes dunas do deserto

se necessário for, domando, os grãos de areia

para que um beijo na minha boca, enxerto

seja; pavio de suave luz, perene candeia.

 

Abrupta emoção nos colhe, doce impulso, teia

que nos condena ao profundo azul do mar aberto.

O vento virá, profusos sons, nossa alma enxameia.

 

No nosso rio bordejam astros verdes, curso incerto,

lacónicas raízes entrelaçam afecto que campeia

na amplidão do amor, ímpar, agora reaberto.

 

Aveiro, 10.10.2020

 

 

 

 

 


quinta-feira, 12 de novembro de 2020

SINAIS DOS TEMPOS (CONFISSÃO)


Foto de Carlos Pereira


SINAIS DOS TEMPOS (CONFISSÃO)

Carlos Pereira

 

Não sou hoje mais do que fui ontem.

Admitir isto é a minha última alucinação:

é o meu lúcido momento ao lusco-fusco do entardecer

que tarda a estrela d' alva.

 

Mudar o mundo era um dos meus propósitos:

Fiz tão pouco para isso; pouco é igual ao nada que sou.

 

A pouca coragem ou a falta dela,

inibe o pensamento colectivo, dificulta a acção individual

e pode, até, perigar a peregrina liberdade.

 

Todos os meus amigos me confortaram

com abraços de bondade simiesca, dizendo:

que te não fique, mágoa, esmorecido o preito ou

apoucamento pela empresa em vão, porque também nós,

artífices do nada fazer, solidários somos; se algum feito houve,

parca memória nos abordou ao cais dos dias.

 

Agastados ficamos, tão leve punição,

pela inoperante cidadania e pela asquerosa

insensibilidade perante o sofrimento do mundo

tanto mais que, a vida, nos tem dado de presente

não poucas vezes o privilégio da ausência de tristeza.

 

Seguir um lema mesmo que circunstancial, é para nós,

humanos, uma das maiores arduidades; em contraciclo

temos a sedutora habilidade da não presunção do objectivo

para não, em caso de falência, não termos

de congeminar bastardas desculpas.

 

Nada é mais atroz do que caminhar indiferente

pela estrada incendiada de rancores ou por inóspitos trilhos,

atapetados por falsos confortos miríficos.

 

Só nos resta a fuga para o arrependimento,

para o auto flagelo do pensamento,

para o prazer mundano:

caminho tão desprezível quanto a nossa vontade.

 

Aveiro, 12.09.2020


DA NATUREZA DOS HOMENS






DA NATUREZA DOS HOMENS 
Carlos Pereira 


Não bebas se não tiveres sede. 
Ademais, o íntimo recrudesce o sonho. 
A beleza é o aplauso da Natureza. 
O átomo sustenta a vida. 

A vida é a condensação dos dias, o calendário dos anos; 
nunca o insondável futuro. 
Vive a vida não como o bem maior; mas único.
A mão complacente do destino mostra-nos o caminho
etéreo para a escalada da montanha.
O rio transborda as margens do tempo e,
o vento, esse vetusto aliado,
abraça-me com os seus braços de menino pobre.
Renasce uma esperança em flor no altar do meu peito e,
nos canteiros suspensos de tardios jardins,
morre a má fama do ódio e a agoirenta má sorte
congeminada no lôbrego inferno dos homens.
Há um búzio no fundo do mar a cantar um fado de paz;
nas veias marítimas correm sem distância
todos os barcos de dourados mastros da minha infância
e todos os dias fecundados pela mão de um Deus rapaz.
O átomo sustenta a vida.

Gasta uns momentos na contemplação
da beleza calma da Natureza; só ela é calma e gloriosa:
pena termos perdido a ligação umbilical
ao elo fraternal que nos unia.
Ama como um príncipe as flores, as árvores e as pedras
como último acto de amor e inteligência terrenos.
Deslumbra-te através dos olhos da Natureza.
Contempla a sua magia única; ouve a sua música:
admira a suave dança dos doirados trigais ao vento
e escuta os seus lamentos de desumanidade.
Há uma avalanche de criatividade
em cada aparição da sua imarcescível beleza.
Que nunca se torne tarde a admiração pela Natureza.
Castigado sejas, com amargos remorsos,
se por um momento não a reconheças.
Nunca interrogues a Natureza: não te responderá.
Ela apenas te recebe na sua luminosa sala de visitas.
Por dever de seu filho dilecto, cumpre-te por universal desígnio,
zelar pelo seu asseio e pela sua ameaçada saúde.
A beleza é o aplauso da Natureza.

O sonho, bem inesgotável e intransmissível, é
o mais fiável amuleto do nosso pensamento.
O sonho é uma viagem sem retorno, por caminhos
engalanados de pueris imagens que amiúde me avassala.
Sonhar é caminhar sobre o mar, correr por verdes prados
com os pés nus; inalar os cheiros do alecrim, do tomilho,
da hortelã da ribeira, dos coentros; adormecer no colo
da minha mãe e sonhar com o craveiro no vaso
da casa velha, que tantos cravos deu em Abril.
Sonhar é a efémera distância entre o pensamento e a obra;
entre o cárcere e a liberdade: é a lúbrica travessia do ego
desde a modorra nas asas de Hipnos até ao tálamo de ébano,
onde o também alado irmão nos enlaça em mórficas teias.
Ademais, o íntimo recrudesce o sonho. 

A sede, milenar exaltação sensorial do ser
que os estímulos originam e cativam,
roga com a prece dos necessitados, uma gotinha de água
daquela que os rios trazem do úbere ventre escuro da Terra
ou da que verte o céu, condoído, em lágrimas bem-aventuradas.
Gotinha de água que crescendo, multiplicando-se, vai espalhando,
como que por impulso divino, alegria e glória por serras e vales
até às planícies de searas maduras do conhecimento.
O conhecimento é a forma mais antiga para combater a sede
ao atormentado e complexo imo do ser, compêndio agregador
de virtudes que o coração dos homens bebe com sôfrega vontade.
Sempre que regressares do oásis da sabedoria, não te arreigues
ao rebanho, sê nómada, procura novos pastos e novas fontes.
Não bebas se não tiveres sede.


Aveiro, 20.08.2020