CANAL DE SÃO ROQUE

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Foto de Gabriel Pereira




quinta-feira, 12 de novembro de 2020

DA NATUREZA DOS HOMENS






DA NATUREZA DOS HOMENS 
Carlos Pereira 


Não bebas se não tiveres sede. 
Ademais, o íntimo recrudesce o sonho. 
A beleza é o aplauso da Natureza. 
O átomo sustenta a vida. 

A vida é a condensação dos dias, o calendário dos anos; 
nunca o insondável futuro. 
Vive a vida não como o bem maior; mas único.
A mão complacente do destino mostra-nos o caminho
etéreo para a escalada da montanha.
O rio transborda as margens do tempo e,
o vento, esse vetusto aliado,
abraça-me com os seus braços de menino pobre.
Renasce uma esperança em flor no altar do meu peito e,
nos canteiros suspensos de tardios jardins,
morre a má fama do ódio e a agoirenta má sorte
congeminada no lôbrego inferno dos homens.
Há um búzio no fundo do mar a cantar um fado de paz;
nas veias marítimas correm sem distância
todos os barcos de dourados mastros da minha infância
e todos os dias fecundados pela mão de um Deus rapaz.
O átomo sustenta a vida.

Gasta uns momentos na contemplação
da beleza calma da Natureza; só ela é calma e gloriosa:
pena termos perdido a ligação umbilical
ao elo fraternal que nos unia.
Ama como um príncipe as flores, as árvores e as pedras
como último acto de amor e inteligência terrenos.
Deslumbra-te através dos olhos da Natureza.
Contempla a sua magia única; ouve a sua música:
admira a suave dança dos doirados trigais ao vento
e escuta os seus lamentos de desumanidade.
Há uma avalanche de criatividade
em cada aparição da sua imarcescível beleza.
Que nunca se torne tarde a admiração pela Natureza.
Castigado sejas, com amargos remorsos,
se por um momento não a reconheças.
Nunca interrogues a Natureza: não te responderá.
Ela apenas te recebe na sua luminosa sala de visitas.
Por dever de seu filho dilecto, cumpre-te por universal desígnio,
zelar pelo seu asseio e pela sua ameaçada saúde.
A beleza é o aplauso da Natureza.

O sonho, bem inesgotável e intransmissível, é
o mais fiável amuleto do nosso pensamento.
O sonho é uma viagem sem retorno, por caminhos
engalanados de pueris imagens que amiúde me avassala.
Sonhar é caminhar sobre o mar, correr por verdes prados
com os pés nus; inalar os cheiros do alecrim, do tomilho,
da hortelã da ribeira, dos coentros; adormecer no colo
da minha mãe e sonhar com o craveiro no vaso
da casa velha, que tantos cravos deu em Abril.
Sonhar é a efémera distância entre o pensamento e a obra;
entre o cárcere e a liberdade: é a lúbrica travessia do ego
desde a modorra nas asas de Hipnos até ao tálamo de ébano,
onde o também alado irmão nos enlaça em mórficas teias.
Ademais, o íntimo recrudesce o sonho. 

A sede, milenar exaltação sensorial do ser
que os estímulos originam e cativam,
roga com a prece dos necessitados, uma gotinha de água
daquela que os rios trazem do úbere ventre escuro da Terra
ou da que verte o céu, condoído, em lágrimas bem-aventuradas.
Gotinha de água que crescendo, multiplicando-se, vai espalhando,
como que por impulso divino, alegria e glória por serras e vales
até às planícies de searas maduras do conhecimento.
O conhecimento é a forma mais antiga para combater a sede
ao atormentado e complexo imo do ser, compêndio agregador
de virtudes que o coração dos homens bebe com sôfrega vontade.
Sempre que regressares do oásis da sabedoria, não te arreigues
ao rebanho, sê nómada, procura novos pastos e novas fontes.
Não bebas se não tiveres sede.


Aveiro, 20.08.2020

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